quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Contas mal feitas

Quando o meu vizinho de cima se matou e depois o filho mais velho até que, por fim, se matou também o mais novo, não perdoei a nenhum. Quer dizer, nada havia a perdoar, mas achei estúpida essa morte assim marcada de corda e veneno. Explico: esse desistir da vida, das mãos dela, dos olhos dos miúdos, do candeeiro aceso à noite e do cheiro do after-chave. Lançar-se para o infinito pela única razão em que não acredito: o dinheiro, ou a falta dele. Esta vergonha que assaltou as pessoas. Percebo a desistência de quem já não tem com que alimentar a criança, posso ceder na consciência de quem por causa de uma empresa que fecha atira para a miséria dezenas de famílias. Percebo, mas ainda assim, engulo mal, engulo a seco. A vida ainda vale mais do que o dinheiro o carro que já não se tem as casas que se perderam. Matou-se, coitado, tinha vergonha. Vergonha do quê exactamente? De ter ficado a dever? Que se matem, que desistam, que digam pronto isto para mim acaba aqui e ponto final. Matem-se por amor ou desamor, pela perda, porque se fazem contas à vida e entretanto este lado não ganha. Que nessas contas não entre o dinheiro a fortuna arruinada impérios vãos. Vergonha é quem se mata porque não quer ser pobre. Não faminto, mas pobre.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Esquecer

Sabes que o meu amor por ti vem antes da raiz é disso que preciso que te lembres e que guardes. Não digas nada eu sou apenas uma mãe aflita uma mulher com dúvidas e perdi as chaves de casa. No teu canto ouves as vozes e são as do teu avô e o doce que a tua mãe faz tem chocolate e natas. Eu, amor, desconheço o imutável. Não me perguntes nada, eu sou só alguém com tudo a perder. Não perguntes nada porque não é o caminho que nos faz estamos na estrada mas não somos a estrada e eu morro de pé como se diz como a árvore mesmo que os olhos secos mesmo que tudo esteja errado ainda que saiba que não deveria ser assim. Amor, canta-me melodias doces ao ouvido ou fala-me dos teus vizinhos porque eu sou como quem vem da guerra e não quer falar disso. O meu amor vem antes ficará depois tu sabes e ainda que nunca entendas os meus pesadelos que seja impossível explicar-te as nódoas negras depois de tudo isto eu quero lembrar-te como o anjo que nunca foste e de nós como o sonho que vivi um dia. E ese dia único me basta e bastará para que possa levar esta aflição e esta tristeza calada que nem eu sei. E esquecer.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Aqui

Não me fui embora. De um momento para o outro, tudo me pareceu irreal. As cadeiras. A cerveja na rua. O filme novo. Os primeiros passos da criança. Eu, que vos desejo tudo de maior, deixei de apetecer. E de aparecer. A vida são metades, gomos. Comemos com satisfação e um dia não apetece. A minha verdade pode ser a minha ausência. Mas nunca o meu desamor. Eu sei que isto pode ser difícil de entender. Não me fui embora. Os que sabem quem eu sou, continuam.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Boys don´t cry

As mulheres choram. Claro. É a notícia o filme o coração a saudade o amor e o desamor a palavra feia o espelho o medo o mundo todo. Elas choram quando eles caem e vão beber uns copos elas choram por eles pela dor que, nelas, é a consciência do que virá depois. A pele. Os copos nos amigos. As mulheres choram porque eles não sabem chorar. São viúvas. As mulheres da Nazaré. São mães. Todas as mães choram. São Deusas inundadas em lágrimas que dizem ser mimo e hormonas e fraqueza e tolice e estupidez e nada de nada. Felizmente aprendi a chorar. E com toda a humildade ajoelhei-me aos pés das que choram e exercitei o mea culpa. É preciso ser tão grande para chorar.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Imperfeitos como eu

Os meus amigos são os pecadores de alma tão limpa quanto a verdade. Têm muitas crenças: em deuses com nome, em substâncias, neles mesmos ou em coisa nenhuma. São todos maus e por isso são todos bons. Os meus amigos ligam às tantas da noite e fizeram asneira e então rimos e eu digo deixa estar eu sou pior e eles respondem não eu é que sou e então rimos e ficamos aliviados por sermos todos iguais. Os meus amigos acreditam em coisas parvas como eu, riem-se de piadas negras, guardam borboletas em frascos, escrevem tão bem, cantam tão bem, pintam tão bem, amam tão bem. Quando fazem tudo mal, quando faço tudo mal, encontramo-nos e dizemos coisas como para a próxima vai ser melhor e naquela mesa sem julgamentos somos os melhores amigos de sempre e vamos ser para sempre assim: amigos inquebráveis de juramentos sem livro ou mão no peito. Os meus amigos nunca são ex-amigos. Isso não existe. Não há traição. Os que entretanto se perderam estão apenas a encontrar um outro caminho. Um dia destes ligam e dizem não valho nada e eu digo não valho nada e rimos de novo e ficamos descansados por sermos todos iguais. Os meus amigos não usam máscaras perguntam pelo miúdo com sinceridade quando não perguntam é porque não lhes apetece. E eu gosto disto, destes meus amigos tão puros como a fé tão turvos como um rio. Tão meus. Imperfeitos, nessa medida perfeita de amar alguém.