quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Outono de nós

Tu vieste para baralhar tudo. Sou do Verão, de mais nenhum outro tempo. E é sempre na luz que tudo se apaga. Deveria prestar mais atenção aos sinais. Talvez esteja a perceber tudo ao contrário. Tu vieste com a chuva e com o frio. Em dias cinzentos fizeste-me correr debaixo de aguaceiros. A nossa memória tem um casaco preto com fechos, meias compridas, vestidos quentes. Frio. Chegaste depois da praia, nunca viste as minhas pernas morenas. Nunca estiveste no dourado. A chuva que chega agora somos nós. Em todo o lado.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Não sabemos

Sabemos que nos perdemos quando não sabemos as insignificâncias. De que é que te ris tu? Desconhecemos a hora a que se deitou, que aquela marca no dedo foi uma queimadela no forno, que se perdeu o início da série por causa da lasanha que estava a queimar e já não havia espaço no gravador. Não tomámos café pela manhã quando se estreou a t-shirt nova e lavámos os cabelos muitas vezes até que nos pudéssemos olhar de novo. De que é que te ris tu? Apercebemo-nos de tudo o que nos falta essas coisas menores como terem cortado as árvores na rua eu já não usar unhas compridas, os calções verdes do menino agora estarem curtos. E é como se de repente tivéssemos batido com o coração numa esquina. Olharmos o tempo que passa e nada se sabe, tudo se consome nos dias em que nos existimos longe. De que é que te ris tu? Quando deixamos de saber qual era a piada. Não estávamos lá. As coisas realmente importantes são estas. Porque a vida é mais do que os acontecimentos grandes e audíveis. Viver são as coisas pequeninas, sabias?

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Não podes ficar

Pai, estás tão magro. Não te dão comida no céu? É o segundo dia que me visitas e, como sempre, eu sei que não pode ser verdade. É bom e triste e somos nós às vezes sem sermos nós. São sonhos sem serem sonhos, porque neles não há o dom da maravilha do sonhar. És tu, do outro lado de mim. És tu, triste como eu. Mas és tu comigo e isso é um milagre. Falámos. Disseste coisas. Eu disse coisas. Até que pousei a cabeça no teu colo e quase adormeci dentro do sonho. E disse-te: "Não posso ficar aqui muito tempo, porque me sabe bem e depois não acordo". E tu foste um sorriso imenso mas todo aquela tristeza doce de já não poderes estar aqui, de sabermos disso, ambos, de eu ter de caminhar sozinha, sem te olhar. Aqui no meu sonho no meu desejo na minha cabeça, tu conduzias o carro. As saudades dos teus braços morenos, esticados, equanto conduzes. Mas, Pai, estás tão magro. Sempre foste assim tão magro? Come, não te entristeças, não morras ainda mais nessa morte longe de mim. E volta, sim? Fica aqui este bocadinho. Fazes-me falta (e sim, eu sei que me abraçaste, é por isso que sei o magro que estás).

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Manda vir

Vou recomeçar do ponto onde parei. Sacudir a poeira. Não vou pedir desculpa a ninguém porque isso não muda nada. Farei o melhor que posso: os erros não se limpam com saliva, transformam-se em coisas inacreditáveis e eu farei algo inacreditável. Vou recomeçar exactamente do ponto onde parei. Uns dias antes de voar, quando fiz a mala em um instante e nem aproveitei tanto mar tanto mar. Chega. Sou pecadora. E também faço tudo mal. Onde estão os meus sapatos vermelhos? Preciso deles agora que me faço à estrada. Chamem os poetas. Para onde eu vou, quero que me acompanhem.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Madrugada

A noite inteira a vida toda. Agora acordo com medo parece que entram em casa. O medo é uma coisa que começou a fazer barulho e que me assusta. Não é um medo pequenino de possibilidades ínfimas. Acendo as luzes e espero que elas me guiem na escuridão. Nunca tive medo de nada, sabes? Deves lembrar-te. Todas as cidades a todas as horas. E agora tenho medo de tudo, como se de repente me desse conta do quão perigoso é viver. Sinto saudades de muita gente e quando o menino entrou na escola, hoje de manhã, os meus olhos ficaram agarrados às pedras o meu coração ficou murcho. Tanta coisa que tu não sabes. Como eu agora ter medo. Quando é que o mundo se tornou tão triste?

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Stop

Por cima daquilo em que eu acredito e do lume dos meus olhos. Não. Não passarás.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Puzzle

Tenho uma sorte danada, como tantas vezes digo, nos amigos que tenho. Se calhar falta-me sorte noutro lado, o que me falta às tantas é só mesmo a paciência. Ela tem olhos azuis entre muitas outras coisas que eu não tenho: sabedoria, calma, paciência. Ela tem assim uma forma de ser de sorriso leve e constante e eu acho que se antes nunca falei muito com ela foi porque me parecia tão calma e sábia que pensei que não pudéssemos dizer coisas uma à outra. Esqueci-me que a amizade nos ensina, que nos revela. Esqueci-me que eu, entre as linhas do que fiz mal, faço outras coisas bem. Sou esquecida disto, de mim, a minha vida é confusa estranha difícil de explicar aos outros. Esta minha amiga que tens olhos azuis e muitas outras coisas que eu não tenho deixa-me estar. Não me obriga. Vê-me para além da confusão. E hoje uma vez mais deixou-me o recado: espera. Acredito nela. Acredito na sorte que é tê-la comigo. Pedaços de tanta gente que admiro: é tudo isto que me reconstrói.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Antes e depois

Aproveita o intervalo. Essa hora pequenina e eterna do concerto. Aproveita o intervalo esse momento extacto e perfeito em que o teu bebé respira em perfume para o teu pescoço e o instante da mão dele sobre a tua dos olhos dela límpidos e tu ainda sem mágoas pesadelos traições vida. Aproveita o intervalo quando trincas o melão sente-lhe o maduro a cor laranja entre os dentes esmaga gentilmente o bago da romã. Aproveita até conseguires aguentar o instante em que cais devagar no sono nada te maça nada te pesa nada te dói e dormes sem um sonho na lembrança quando morres e acordas vezes sem fim. Aproveita quando matas a sede e não desejas mais és inteiro no líquido a renascer-te a garganta, fecha os olhos no primeiro e no último beijo. Agarra tudo o que puderes. Eterniza como souberes. Aproveita o intervalo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Um dia destes

É. Um dia destes encontramo-nos e falaremos a mesma língua. Eu direi fica no mesmo segundo em que atiras a mochila para um canto e todas as palavras todas as palavras podes dizê-las a cantar que eu continuarei a escrever. O meu Não o teu Não o meu Sim o teu Sim. É. Não vais achar estranho que eu me embale como uma criança perdida ou que me que perca sempre nos caminhos. Um dia destes o sol entrará no mar todos os dias a esse sol será o mesmo nas noites más nas noites boas. Vais entender. Vais entender. Vamos ter tanto tempo eu sei que nunca terei medo de adormecer e perder tudo. É. Vamos viver de janelas abertas. E o meu cabelo será ondulado nos primeiros raios da manhã. Um dia destes vai ser fácil fácil. Vais ver. Um dia destes encontramo-nos.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Valsa

Não me beijaste devagar. A urgência faz parte do que já se espera, a saudade é mais lenta, quer esticar o momento dividi-lo em segundos, parti-lo em partes tão ínfimas e tão importantes que o tempo que durou é imenso. Não me beijaste devagar esmagaste-me antes os lábios como se me dissesses assim coisas. As que eu não queria ouvir. Devias ter-me beijado mais devagar a valsa é uma dança lenta porque quer dizer coisas pequenas e grandes. Decidiste rodopiar comigo numa batida que de tão rápida quase me fez doer a lembrança. O amor é devagar, eu agora sei. E menos, não, muito obrigada.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O mapa do coração

Quando tinha 18 e 19 depois 20 e 21 trabalhava um dos meses de Verão para juntar dinheiro e fazer uma festa de anos. Em Setembro, era Coimbra e era tê-los ali, tantos e tão bons, numa casa antiga, onde o quintal se enchia de vasos gigantes com sangria, onde a cerveja gelava em água do tanque, onde eu normalmente caía para o lado de cansaço e ainda batiam à porta para entrar. E entravam. A minha felicidade era essa: os muitos abraços, a minha gente feliz, podermos estar juntos, aqueles sorrisos, as conversas. Tínhamos absolutamente tudo. Nada me faltava. Aprendi a ser feliz também ali. Antes e depois, corri este país levada pela vida e ontem, aos 34, parece que todos esses caminhos decidiram desaguar em mim. De uma assentada. Como uma avalanche. Não sei explicar dizer o que se sente quando não se espera nada e de um momento para o outro o dia é um passaporte para a felicidade. Quando uma manhã qualquer, uma tarde, através de dezenas de corações a bater também por nós, nos sentimos pertença. E descobrimos que as nossas raízes se estendem por mil sítios e que carregamos tanto e tão bom dentro da alma. Ontem foi uma vida inteira e eu não sei como algum dia me pude esquecer de tudo isto. Da minha infância ao agora, todas as lições caíram aos meus pés, inundaram-me de certezas, transformaram-me. Não sei se é de mim se é da vida, mas se houve um dia que me mudou, esse dia foi ontem. Não esperava nada. E tive tudo. Obrigada.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

34

Amanhã, quando acordar, deixei de ter 33. Não existe nada realmente marcado. Entro nos 34 a deslizar, devagar, pé ante pé, como quem espreita ou se convence. Com fé. Crescida. Olhando para trás, poderia desfiar um rosário de recordações. Ano duro. Ano necessário. Ano de amizades que chegaram à minha vida quando eu não sabia que as amizades ainda se faziam assim. Um ano tem tantos dias, momentos, chuva e sol frio e soluços gargalhadas grandes. Mas um ano é aquilo que somos, na mesa, com bolo e sem bolo, com gente e sem gente. E eu tenho gente boa daquela mesmo boa em todo o lado. Ainda hoje ligavam. Diziam: "então como é que é". Até o meu amor tem algo para me oferecer. Mas é como digo, é pé ante pé, a deslizar, a falar comigo em frente ao espelho, a dizer: não voltes a repetir, a esperar melhor de mim para os outros. Tenho esperança nestes 34 como tenho esperança na vida inteira. Um dia chego lá. Pode ser amanhã. Pode ser este ano. Crescida. Melhor. Em Paz. Podia ser tudo diferente, mas eu sei por que é que tem de ser assim. Vamos lá.

Verdade

No banco do jardim, quando a tua cabeça baixou e eu senti as tuas veias tremerem perante a possibilidade absurda de te estar vedado tudo o que mereces, eu soube. Daria duas cambalhotas para te fazer rir ou desenharia no chão, a lápis de cor, a mulher da tua vida.

sábado, 1 de setembro de 2012

Saber felicidade

A felicidade sabe a laranja. Acho que sabe a filmes e a cabelo molhado. Sabe a noite de Verão, a unhas dos pés pintadas. A felicidade sabe a sono e a paz, a fome e a preguiça. A felicidade é o som da televisão muito alto na casa de alguém, a novela e uma mão encostada na outra, a louça a escorrer na cozinha. Acho que também sabe a castanhas e ao teu quarto de manhã: janelas abertas, fronhas azuis escuras, um candeeiro branco baixinho, um cinzeiro redondo em que só cabem quatro beatas das tuas e duas das minhas. A felicidade é vermelha. A felicidade cheira a pão e a churrasco cheira a hambúrquer com ananás. É um homem de fato e gravata a beijar na boca a namorada. São dois cafés e um leite com chocolate. Um pacote de açúcar enrolado numa bolinha. Cócegas. Lutas de almofadas. Dormir no chão. Um cobertor azul felpudo e o House. A felicidade são amendoins e bolachas de chocolate e manteiga. Areias. Lua cheia. Chá e perfume. Conchas e carícias na orelha. A felicidade é subir as escadas quatro a quatro para chegar mais depressa. Algo a tiracolo, a cruzar uma camisa branca, o amor em xeque-mate ao cansaço. A felicidade é tanto tanto. Eu sei.