terça-feira, 31 de julho de 2012

Limos

Para a esquerda, um círculo que pode encerrar um buraco. Ou a certeza de que não estava errada. Para a direita, um caminho que pode levar a um círculo que poderá encerrar um buraco ou até uma onda gigante com espuma tão suave quanto um beijo. Ou com areia tão agreste como o fio de uma navalha. Eu, no meio. O trapézio são limos. Por baixo uma e por cima outra. Vida. Seguir o coração não é resposta. Também o não é seguir a razão. Esperar não cabe em solução. E agora?

domingo, 29 de julho de 2012

O medo

Hoje é Domingo. Os sinos tocam e as filas de fé encontram um lugar no dia. Hoje é Domingo, há almoços e coisas para fazer. Lavam-se carros e arrumam-se cd's. Hoje é Domingo e há caminhos de volta. Reuniões. Lençóis na corda a refilar com o vento. Corações pequenos em estradas cheias de buracos. Hoje é Domingo e não há muito a esperar. Tudo continua amanhã e depois de amanhã. Hoje é Domingo e os cafés fecham mais cedo, outros estão encerrados para descanso do pessoal. Hoje, que é Domingo, regresso à cidade. Parada. Vazia. Suspensa. E não sei.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Impossibilidade

Prometeram-me o mundo. Disseram-me: ouve lá fora a felicidade, podes ter tudo isto. Era uma manhã amena e uma rua conhecida. Pediram-me em frases como as que dizem os protagonistas dos filmes como as que lemos nos romances de cordel nas novelas depois do jantar. Frases feitas que já ninguém diz. Disseram-mas. Que contariam ao mundo em parangonas, que fariam rugir os leões. Vieram com um cavalo branco, como nas histórias em que não acredito. Ao fundo, uma música que eu não conhecia. Falaram de tudo aquilo com que eu sonho, como se tivesse escrito nos olhos o que anseio e alguém, do outro lado, tivesse adivinhado. Adivinharam-te. Somos sempre culpados daquilo em que acreditamos.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Não

Chegará o dia em que perceberás que as cartas voam mesmo quando não as sopram. Existe o mar. Existe a crença. Existe o poder que em nós se ergue mesmo quando estamos deitados. Enquanto os meses passam, há ervas daninhas que tu não vês. Existem árvores. Existem verdades. Existem sombras e fantasmas. Tudo te parece fácil à mão de semear. Lá longe, no tempo das coisas que ainda não chegaram, uma mão serena. Nessa mão existem linhas que tu não conheces. Faltar-te-ão as palavras. Os segredos que temias serão uma verdade que te espanta. E que te ignora. Como um "Não" que te parece certo certo e certo. Eu vim de lá. Sei como termina.

domingo, 22 de julho de 2012

Alfabeto do coração

De que me valem todas as palavras do mundo? Construir coisas com elas fazê-las saltar atirá-las mais para diante, enrolá-las entre os dedos, torná-las fininhas ou grossas como uma boca cheia de riso como um comboio em hora de ponta? De que me valem as palavras de arte, torcidas como linha de renda, telas e Arraiolos, de que vale serem todas força, derramarem-se sobre a página como onda a descansar na areia? De que me vale a beleza de tudo isto, olhar através das janelas e encontrar sempre alguma coisa para dizer de outra maneira. De que me valem todos os poemas do mundo, todas as coisas que sei, essas danças intermináveis na minha cabeça? De que me vale esta página inteira? De que me vale tudo o que acontece por fora? De que me vale o discurso certo e a frase fácil se não sei o alfabeto do coração?

terça-feira, 17 de julho de 2012

Em nome do pai

Estava decidido. Calar-me-ia. Ela tinha dito que o pai a fora visitar. Esta noite foi a minha vez. Não me lembro de nada e lembro-me de tudo: essa luz que só quem foi amado conhece. A luz acordou comigo. Todo o amor que me plantou floresceu. Os meus pés tocaram no chão e caminhei até à sala. Liguei a uma das quatro. Disse-lhe. Esqueci-me entretanto. Estava decidido. Calar-me-ia. Trabalhei. Fui visitar o amor maior. Fomos à praia. E, pelo caminho, a luz que ele fora, voltou a lembrar-me. Era ele quem me dizia para não me esquecer de encher o depósito da água. O carro avisava-me e eu não percebi. A mão de quem nos amou nunca parte. Vive dentro de nós. Há quem a encontre na religião, na fé, em coisas de vozes do Além. Eu acredito na mão do amor, que fica na memória. Basta termos sido amados apenas uma vez para nunca mais caminharmos sozinhos. E eu nunca caminho sozinha. Depois da água, o mergulho, depois do mergulho, o caminho. E foi no caminho que percebi. Tu dizias, pai, tu dizias: "Vai devagarinho. Enquanto tens medo, vai devagarinho. Deixa-os buzinar, deixa-os insultarem-te, vai na tua, chegas lá na mesma. A estrada também é tua e tu vais como te sentires melhor". Pai: vou devagarinho. E não me calo. A estrada também é minha. Amo-te.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Silêncio

Conheço alguns dos que aqui passam. Gosto deles. Os outros, que não conheço, gosto também. Escrevi isto, algures por aqui, e era para o P. Agora, é para mim. E para quem aqui vier e encontrar o silêncio. Sei que volto. Não sei é quando. Obrigada por me terem acompanhado. "Para que escrevas, a dor tem de ser amena, a meio termo. Tal e qual a alegria. Tudo o que tocar no extremo será difícil de decompor. Se te esfrangalhas não podes dizer nada: há um lugar onde as palavras não existem, só uivos. Se for demasiado, apenas encontrarás folhas em branco. Irás fugir de tudo isso. O luto pressupõe que a carne rasgada se esteja a fechar. Por isso é que se chama luto. Antes disso e, às vezes, depois disso, não há talento arte ou condição que te valha. Não há nada. O mais assustador é esse vazio que te entra pela boca, te tolhe a língua, te mói os músculos. Abres e fechas a boca e dizes coisas como Bom Dia ou Boa Tarde e elas são o teu último esforço. É preciso que passe o tempo. Esse ditador e usurpador. Só depois. Então."

domingo, 15 de julho de 2012

Sábado

Não pertencer a lado algum e assistir ao mesmo em todo o lado. Alguém tocava contrabaixo. Ela, tão bonita, ele, tão distante. Ela, que é ajudante de mecânico, que tem olhos azuis céu e cabeça rapada. Que cumprimenta todos os que passam, sao todos importantes. Faz-me perguntas às quais eu não sei responder. Um mundo inteiro desconhecido entre nós. Alguém a tocar contrabaixo, alguém a beber cerveja, e eu a pertencer a lado algum, a seguir em frente como que por arrasto, espectadora de tudo sem perceber o peso da solidão. Ele, de rastas negras como o rosto, um mundo inteiro desconhecido entre nós. Coisas como partituras, coisas como burrice, coisas como tocar na rua e seguir em frente. Eu a falar do Conservatório. Um mundo inteiro desconhecido entre mim e os outros. E tão iguais. Ela, a apanhar um táxi ainda nem eram duas. Eu, com ela. Ele, com outra. O passado aqui tão perto quando nada podia ser mas tudo ainda iria ser. Alguém estrela um ovo e devem ser sete da manhã. Não quero ouvir barulho. Dentro da minha cabeça os meus sapatos, a rua inteira, pessoas que gostam de mim mesmo quando existem mundos desconhecidos entre nós. Não pertencer a lado algum e assistir ao mesmo. Cheiros diferentes, braços e pernas, sorrisos, dentes tortos, dentes direitos, olhos azuis profundos, olhos escuros como a noite. "És tão bonita". Um buraco profundo e enjoativo no escuro, por onde caio devagar, com um sorriso torto, até ao entardecer.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Lição

Amanhã é já amanhã a minha rua vai ser um Carnaval. Dançarei com eles. Os sorrisos que me encontrarem na rua serão mesmo sorrisos e não a prova de que o mundo continuou (que o mundo continuou!). Continuarei com ele. Comerei cerejas e não aquilo que sabe a cerejas mas que o meu coração não consegue reconhecer. Quero cerejas no meu coração. Não que esqueça. Não que não guarde no peito. Não que me lembre como do sangue depois do corte. Eu sei. Saberei. Mas será terno e doce. Uma coisa que afago e não uma coisa de que fujo ou a que me atiro com todo o estrondo. E estrago. Algo de que me admiro. Que é bonito e não o pior retrato dos homens e das mulheres. Do horror que todos temos. Quero olhar para o horror e seguir em frente. Dizer-lhe adeus até com uma certa candura, que todo ele nasceu do desconhecimento. Um erro persistente pode ser uma lição nunca aprendida. Sim. Amanhã eu lavarei a loiça não como um condenado à forca mas como quem está só a lavar a loiça. Quero saber de tudo debaixo do chuveiro e olhar de frente para o espelho. Não fugir do espelho para que ele não me devolva a verdade. Que seja verdade. Mas que não seja tristeza. Amanhã é já amanhã vou contar os vestidos fazer contas aos textos e continuar aqui mas mais para o lado. Sabes? Como quem espera da melhor maneira que existe. Da única que deveria ser autorizada: esperar enquanto dança. Levar isto a dançar, nunca em círculos. Andar para a frente com o coração carregado de histórias e da mesma história contada de outras maneiras. Guardar no peito guardar no peito e dançar.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Miguel Bombarda

Ergues os braços e soltas gemidos crias noites sem nexo onde apenas se ouvem teus gritos num mar de sargaços. És louco e, dos teus dias, teces teias de nadas. Não és um louco só. Teus irmãos esperam por ti. Nas ruas. Nas esquinas. No pó. Por onde passas. Também aqui. E gemem-te pedindo favores. Que são cigarros ou amores. Que são tanto, na tua loucura. Que são espanto, na nossa vida e candura. És louco. E esperas muito.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Mergulho

Enquanto uma de mim está sentada, a outra levanta-se e rega as plantas, corre atrasada, faz telefonemas, enche sacos no supermercado, junta palavras que são importantes e necessárias. Dizem eles. A outra de mim vai sempre mais devagar e parece-lhe tudo muito vago. Traz uns óculos escuros muito grandes e um lenço de cor indefinida que é imune ao calor aos meses ao tempo que agora é este. Tem um ar incrédulo enquanto vê a outra de mim continuar. Não está à espera de nada mas espera tudo. É a única que sabe a verdadeira contagem do relógio, é a única que conhece o caminho que não está a ser feito. Sentada que está, também se levanta e às vezes vai com a outra de mim. Tem de ser. Fica sempre um passo atrás, a assistir. E tudo lhe parece irreal. Não é. Chegará o tempo em que se encontrarão e talvez um abraço e talvez nada. Espero que aconteça durante um mergulho, à sombra de uma árvore, que haja em todo esse momento o esquecimento necessário para não existir memória do encontro. Chama-se cura e nunca sabemos quando acontece. Melhor assim.