segunda-feira, 30 de abril de 2012

Total

Tem medo e só desconfia. Não sabe. Do chão de madeira a arder e da tua bota a apagar o fogo que ardia cá por dentro. Ela tem medo e não sabe do meu vestido azul e de que não há como vencer o tempo da inocência. Como não sabe das escadas, das esquinas, átrios de prédios, de um terraço enorme sobre o rio eterno. Ela não sabe que não pode destruir o que viveste. Que te não pode arrancar da ponta dos dedos a textura e do interior da língua, o sabor. Contaste-lhe dos gatos? Da mobília partida? Ela não sabe que o início está em nós, a parte mais bela, a única que vale a pena. Nada pode. Nada podes. Nada podemos. Ela não sabe de tudo isto e quer esmagar o que não é palpável. Enquanto não me perdoares, ela não pode nada. Na tua incapacidade de perdão, está a verdade.

S.

És metade do meu tamanho. Dá-me mais jeito secar-te o cabelo se estiveres sentado. E, hoje, fechei os olhos e senti o teu corpinho pequenino dentro de mim. Passou todo este tempo e não passou tempo algum. Quero vestir-te umas calças minúsculas, mas o que mais desejo é que caibas no meu abraço, sem que sobrem pernas e braços. Já não te posso chamar bebé. Tu não te importas, mas tenho de te deixar crescer. Sussurro para que não oiças: bebé, bebé, bebé, meu bebé. Sais a correr do ATL e contas-me coisas de amigos e inimigos que depois ficam amigos. O meu ar de parva deve confundir-te. Talvez me aches estranha. Sempre que olho para ti eu sei que as tuas mãos cresceram, eu sei que agora és um menino que refila comigo e que me diz: "Mãe, tu não sabes jogar", mas aqui no meu coração tu és sempre do tamanho com que nasceste. Continuo a cheirar-te, sem que percebas. E a chamar-te, em segredo, bebé.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Liberdade

É preciso muita coragem para ser livre. Nem imagino. Só sei isto que sei. Que ainda me sinto presa, e vivo, dizem, num país livre. É preciso mais para que exista Liberdade. Só quando todas as portas estiverem abertas. É preciso ser livre por dentro, para criar liberdade lá fora. Eu olho e vejo-os (por vezes também lá estou), agarrados séculos às mesmas coisas. Nunca somos, nunca seremos completamente livres. Quanto mais um país. Cresci num tempo livre onde caminhavam pessoas com coisas ainda por esconder. O meu avô, que era poeta e escrevia "puta de liberdade que me arrancou da terra que eu amava". O meu avô que era colonialista e racista. E que tinha medo que alguém lesse o poema. E que lhe roubassem a reforma. Por causa dele, sou de Esquerda. E, ainda assim, foi livre, que eu sei. Ai a liberdade. Tão difícil.

domingo, 22 de abril de 2012

Domingo de danos

Não gosto de Domingos. Ninguém me ensinou a gostar de Domingos e eu não o aprendi a fazer sozinha. Não gosto de passear aos Domingos, não gosto de restaurantes aos Domingos, não gosto dos filmes de Domingo, não há nada que eu goste nos Domingos. Aos Domingos tudo fica mais pequeno. O som dos sinos da igreja entristece-me, espero não morrer a uma sexta-feira, não há nada mais deprimente do que enterrar alguém ao Domingo. A semana devia começar ao Domingo. Gosto de sextas e de sábados. Até gosto de quintas, mas os Domingos plantam-me um salgueiro-chorão no peito. Aos Domingos não há sorriso ou energia que resistam. Dizem que é dia de descanso, mas é quando tudo o que é triste se agiganta. Ñada me descansa, tudo me atormenta. Domingo é a ressaca. Ao Domingo toda a gente se vai embora. Domingo são as despedidas, Domingo é a cama vazia de novo, Domingo é a verdade. Ao Domingo, lembro-me, chegávamos todos à cidade e à medida que o rio se aproximava da janela do comboio, aos poucos a segunda-feira ia surgindo, e tudo parecia melhor. Mas, para trás, tinha ficado todo o horror da despedida, a mala feita à pressa, alguém que não se queria despedir. Na partida, querendo ir, deixei sempre alguém de coração destroçado, à espera de uma sexta. A fugir de um Domingo. Não gosto. Nunca me ensinaram. Nunca aprendi.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

...

Olha Pai, é assim, hoje é dia de saudades. Ele levou a tua foto, alguém disse que estava a ficar desbotada e que o papel e que o tempo e não sei o que mais disseram. Só me lembro que fiquei a pensar em todas as fotografias que não tirámos. Tenho-as aqui, vejo-as dentro da minha cabeça, mas preciso delas, precisava de as mandar emoldurar. Preciso de tirar fotografias, vou começar a tirar fotografias de tudo, mesmo que, depois, doa mais. Olha Pai, podes explicar-me por que é que sempre que sonho contigo, sei que tudo mudou? Que és tu sem seres tu? Não podias viver nos meus sonhos? Tem de ser sempre assim... nunca falas, olhas-me com um ar tão triste e distante. Estás triste? Estás zangado? Se eu te pedir, podes falar comigo? Não, não tem de ser hoje. Um dia destes, podes viver no meu sonho? Ainda não acredito, não digo isto a ninguém, porque é estúpido, mas não acredito. Um dia destes bates-me à porta, eu sei que sim. Vou ter mesmo de viver o que resta da minha vida sem te poder contar mais nada? Correu tudo mal Pai, deves saber que correu. É por isso que estás zangado? Desculpa.

Casa

Ainda não tinha 19 e já sentia saudades de casa. Já me tinha ido embora há tanto tempo. Saudades do pão. Da alcatifa. Da cama torta. Do café que fechou. Se soubesse, então, que me restava só mais uma década, teria ficado mais tempo. Tenho tantas, tantas saudades de casa.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

De fora do coração

Gente miudinha sem coragem de dizer um Não, de ouvir um Não. Gente das nove horas, do obrigadinho, do não vou dizer o que acho de ti meu pindérico porque eu sou muito educado. Gente do durmo doze horas porque preciso incapaz de dizer durmo doze horas porque me apetece. Gente da diplomacia barata do ai se me levam a mal. Gente assim por todo o lado. Gente assim, até, vejam bem, no amor. Gente que magoa por não dizer de frente, gente que não sabe, que puxa o tapete devagarinho. Vamos a ter coragem. Venha de lá o murro na cara. Gente cobarde para dar um empurrão, gente com preconceitos a não ser que seja para a fotografia. Gente da discussão enquanto está nos copos, do nada no terreno. Gente cheia de medinho, que quem tem medo grita. Gente da roupa em segunda mão para que se veja e afinal tem nojo, gente da diferença que se borra de medo se entra em bairro mau. Gente de fora, que é sempre de fora, de fora do coração. Gente que me aperta a garganta pela incapacidade de se engrandecer. Que não sabe nada. Que continua sem saber nada. Gente que não vê. Gente que anda carregada de livros e de programas da TV que repete o que os outros dizem. Gente que olha para o céu e quer voar, mas que sejam outros que arrisquem. Que caiam estes. Gente que cresceu mal. Gente que nunca vai crescer.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Limbo

Somos como irmãos, almas atravessadas. Não sabemos nada um do outro, andamos perdidos, vivemos de encontrões. Não acreditamos. Bebemos imperiais e dançamos como se fosse possível, como se existisse lugar para o vazio. Ouvimos música. Quando nos despedimos, esperamos nunca mais nos encontrar. Somos irmãos. E inimigos. É o limbo que nos une.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Senta-te aqui ao pé de mim

Nunca estarás longe. Desde então, desde as ruas de Alfama, das sardinhas e da cerveja, desde que me ensinaste coisas como caminhar nesse vosso mundo, um mundo ao qual eu pertenci por momentos, o mundo que me ofereceste de bandeja e que eu recusei. Não, nunca estarás longe, porque moras dentro de mim. Eu tenho um Anjo; Não, ele não usa a força; Usa uma luz; Com que ilumina a minha vida.