quarta-feira, 28 de março de 2012

ORH+

Sou do mato, sou da rua, do fogo, da gente, sou do chão, do acampamento, da água clara sou do povo de cima de baixo sou da ave que morre sem sobressalto sou daqui que é este lugar cheio de pedras partidas não sou de ninguém não me pertenço sou tua se me deslumbrar. Um dia. Só posso ser tua um dia. Sou da verdade sou da mentira bonita que poupa sou da confusão do meio do nada da mala no chão sou da terra e do Verão. Sou da guerra da luta do sangue sou do alto do grito da música sou da repetição. Sou do mundo da casa do campo da estante do pó da noite do dia de óculos de sol. Sou do escuro da tarde do copo na mão da sombra da luz quando estou feliz sou dos meus. São sempre meus, mesmo quando já não estão.

terça-feira, 27 de março de 2012

Obrigada.

Tenho de ser grata só posso ser grata. Obrigada por me teres atirado ao chão antes de começar a andar. Por tudo isto e mais isto ainda: obrigada por me teres mostrado a vergonha, a desilusão, o horror, a saudade, a distância, os montes que são grandes como duas luas, existem sempre duas luas no mundo das crianças mesmo quando elas crescem. Quem viveu muito tempo triste sem se aperceber tem duas luas nos olhos. Tenho de ser grata. Sou grata por ser deste tamanho, por segurar esta mão, por me ter surpreendido, por todos os comboios, pelas malas grandes e vazias. Pela dor. Eu sei tudo isto. Como sei que os lençóis de flanela ficam muito húmidos em casas velhas.
Tenho de ser grata. Porque em dias de sol, porque em dias de morte, porque em dias maus e tão maus eu sei que o meu lugar é outro. O que nos carrega, nos transforma, nos agiganta é qualquer coisa que aprendemos: a luta que nos define.
O que me faz continuar, a mim, é algo entre o instinto e o amor.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Vida

Pagamos sempre a dobrar. Ouçam o que vos digo, que nisto de pagar eu sei, eu pago, sempre paguei. Pagamos todos. Às vezes não entendemos, mas há uma justiça qualquer, porque a energia de que somos feitos, essa energia é uma corrente e se a quebrármos, quebramo-nos com ela. Acredito na justiça das coisas, por isso nunca enlouqueci de vez. Enlouqueço devagarinho, pelo tempo que demora. Mas cada vez custa menos. Tem dias. Começo a achar que envelhecer, que tem tudo de mau, pode ter isto de bom: comprei o bilhete e agora vou sentar-me na bancada mais alta e ficar a assistir.
Espero que seja um bom espectáculo.

Sono

Comove-me tanto a ternura entre os que não se amam. Devia ser assim o amor: nenhum medo de perder. Devia ser assim o amor: ciúmes por graça, perguntas por cortesia.
Eu, que conheço a culpa, não quero saber. Eu, que conheço histórias, não quero contar.
Devia ser assim o amor: a simplicidade de um andar alto aonde não sei se quero ou se irei voltar. O amor devia ser isto e nunca é isto. Porque isto é Primavera, sem a esperança, ou Outono, sem a tristeza. O amor nunca é descanso. E eu adormeço sempre melhor quando não amo.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Porquê?

O que é que se diz a alguém que nos invade? A alguém que durante anos construiu uma imagem de nós que não somos nós sendo verdade que aquilo que somos é toda uma vida que passa? O que é que se pode dizer a alguém que ano após ano, que vez após vez, nos invadiu a vida, nos espiou a privacidade, que entrou na nossa cabeça, nas nossas conversas, no mais íntimo de nós, sem nos pedir? Sem sequer nos conhecer?

Eu tinha um blogue, antes deste. Chamava-se Verdade ou Veneno. Um dia desapareceu. Como foram desaparecendo senhas de entrada em sítios pessoais, onde está a minha vida, os meus segredos, as minhas dores, amores, o meu filho, a minha família, os meus amigos. Quem pode assim roubar um coração? Assaltar uma vida?

Ontem, quando percebi que afinal não era o mundo da Web a pregar-me partidas, ontem quando percebi que fui invadida e violada no íntimo da minha vida, fiquei sem palavras. E, depois, fiquei triste. Queria ter sentido raiva, mas não consegui. A tristeza foi como uma casa a esmagar-me inteira. Porque quem me assaltou, nada sabe de mim. Porque quem me invadiu nunca soube nada de mim. Porque quem o fez, nunca percebeu o quadro inteiro.

Há quinze anos atrás eu tinha um amor. O meu primeiro amor. Aquele com quem se vive tudo pela primeira vez. Aquele que é o amor e amigo, que é o amor que traz amigos, que nos constrói, o que nos ensina tanto, com o qual aprendemos tudo: a felicidade plena, o êxtase, a desilusão, a traição, a culpa, a verdade de muitas coisas que se aprendem quando se estabelecem compromissos. Quando o amor se foi, tudo voou. O passado voou. Esse amor de cinco anos conheceu outro amor e construiu outras coisas, como eu construí. O resto é a vida. Tive tantas saudades. Nunca do amor, que conheci outros e melhores, mas do que vivi. Tive tanta pena de nunca mais o conseguir recordar ou partilhar. De não nos podermos rir das parvoíces. Mas tive outros amores, tantos e melhores.

E o amor do meu ex-amor, que não me conhece, que nunca soube nada de mim, a quem eu quis tanto pedir um dia que o fizesse feliz, que acreditasse naquele jeito frio, mas profundo, do meu ex-amor. Alguém que deveria parar e contemplar aquilo que herdou, que devia acordar feliz pelos dedos compridos no seu cabelo, pela lealdade que eu sei que o meu ex-amor é capaz de sentir, pela paz e por tantas outras coisas que não vou dizer, esse amor do meu ex-amor, arrrombou a minha vida. Entrou no meu mundo. Virou tudo ao contrário.

Passaram dez anos. Já não me lembro sequer bem do rosto dele. Não sei nada da vida dele. E a pessoa com quem ele dorme sabe tudo da minha vida. À força. Sem me perguntar.

Foi há DEZ anos. Passaram dez anos. Foi há uma vida.

Será ódio? Será dor?

Não sei.

Sinto isto: Porquê? Porquê eu? Porquê a minha vida?

Espero que te sintas feliz com a minha miséria. Ou com o meu brilho.

sábado, 17 de março de 2012

Mecânico

Eu tenho uma casa de enfeitar, um coração de enfeitar e os meus dedos são de porcelana. A minha voz de aparelho tão mal sintonizado um dois três eu ouço o esforço das minhas pernas e tenho borboletas cinzentas pousadas nos ombros. Tudo acaba e nada acaba. Tudo continua e nada continua. Através dos outros olhos através dos outros que passam, não vejo nada. Pi pi pi é a única coisa que sei. Às vezes tento ouvir os meus passos na terra molhada mas só consigo perceber a lama. Não quero que o senhor do café fale comigo e o indiano da mercearia está sempre a dizer coisas que não compreendo. Digo-lhe Bom Dia e é como se fosse uma bomba a explodir no meio dos pacotes de leite. Ninguém vê, mas o passeio é uma catástrofe. Depois as minhas palavras perdem-se digo muitas coisas, até me rio. Plantei morangos e não sei plantar morangos. Adormeço em pé, vivo a dormir ou então demasiado acordada. Não gosto das calças de ganga à minha frente, não quero cruzar-me com pessoas e elas aparecem em todos cantos como cogumelos. Gosto tanto de pessoas mas é por gostar delas que não quero estar com elas. Tenho vizinhos cheios de sorrisos e não gosto de lhes abrir a porta. Tenho uma casa de enfeitar e dedos de porcelana. Se vires as borboletas, sacode-as do meu ombro. Obrigada.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Eu espero

Existem tragédias que não levam apenas quem partiu. Foi sempre disto que eu tive medo: de perder gente para o sofrimento.

Espero que regresses.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Esqueci-me de te enviar

Pai,

Vou seguir os teus conselhos. Melhorar o meu feitio. Poupar mais. Ter paciência. Sorrir. Ser humilde.

E vou-te provar que conseguirei dar a volta por cima. Fazes-me tanta falta pai.

Vou ficar feliz com pequenas coisas. E comprar chocolates em forma de joaninha para o meu filho. E vou sentir-me sempre grata pelo tempo que passei contigo. E por não teres sofrido, na hora da tua partida.

Amo-te pai.

Crueldade quotidiana

Da primeira vez é como um ataque. Reagimos após o choque. Atiramos com tudo: pedras, tempestades, valentias, jogo sujo, que não há maneira de dizer branco no meio do carvão. É um escuro sítio de finos galhos espetados no coração. Depois de os partirmos, ficam sementes de madeira cá por dentro. São elas que nos apodrecem. Que te apodrecem. Da segunda vez sentamo-nos numa cadeira e ficamos a pensar. Leva dois minutos. Aparecem então os troncos e arrombamos portas, convocamos amigos, existem lágrimas mas são curtas e sem sabor algum. Em desassossego quebramos janelas e explodimos com ruas. E apesar disto, do Carnaval que montamos, é tudo essa farsa. Acreditamos. E, da terceira vez, entre os gritos roucos existem bocados de carne morna e nauseabunda, olhamos em frente e aquele rosto é irreconhecível. E o que sentimos é irreconhecível. Este é o tempo de todas as convulsões. Como um vulcão vomitamos a incredulidade e o terror de ainda ser tudo verdade. Vencidos pelo medo, as palavras continuam duras e cortantes mas se prestares atenção há todo um velório em fundo, onde entram pessoas que falam baixinho e as velhas carpideiras são as vozes a fazer eco dentro do nosso coração. Irão continuar por muito tempo a fazer-se ouvir e apesar de tudo o que vier depois, há ali uma parte que nunca se resgata. Das outras vezes, choramos apenas. Dormimos. Se houver sol vamos à rua e, como zombies, deixamos cair chaves de casa, entornamos o café, não atendemos telefones e adiamos coisas tão importantes como a vida.
Da última vez, não existe um único som. Não restou nada para partir, carpir, fazer sumir, acreditar, vangloriar, entontecer, chantagear, derrubar, contrariar, virar à esquerda será o mesmo que virar à direita. Uma ou duas lágrimas por precaução, só para ter a certeza.
Da última vez estamos imunes. E é quando estamos imunes à dor que sabemos que estamos igualmente imunes ao amor.
É um longo caminho que acaba à saída do supermercado ou enquanto estrelamos um ovo.

domingo, 11 de março de 2012

Não sei

"Eu sempre me preocupei contigo. Tu és uma guerreira e tenho medo que alguma coisa corra mal". Um amigo, com o qual não me cruzava há uma vida, disse-me isto e foi como se me atravessasse. Ele quer mudar o mundo, quer construir pessoas e sociedades. Ainda.
E, ontem, olhando para trás, lembrei-me e quando ele me disse que é bom saber-me igual eu quis dizer-lhe que nada mudou e que tudo mudou.
Ontem foi um dia bom.
Ontem foi um dia mau.
Não sei.

terça-feira, 6 de março de 2012

Irmãs

Éramos quatro. Às vezes duas, outras vezes três, nunca só uma. Os nossos braços acabam numa outra e tenho a certeza que esta cicatriz continua e volta à mesma passando por todas nós. Éramos quatro em cada canto do mundo e os nossos pés nunca sairam do mesmo sítio. Sabemos as mesmas coisas, só nós sabemos como é, como foi. Se alguém começa a contar, nenhuma de nós acaba. Fazemos todas parte do final. Vivemos em duzentas casas e nunca saímos do mesmo sítio. Somos um coração, repartido em quatro e a verdade pertence-nos, a mais ninguém. Temos nomes como lealdade e amizade e dor e pena e raiva e outras coisas tantas. Tomámos banho de mangueira mas não é isso que guardámos. Temos debaixo da pele o nome de estações de comboio e de aeroportos. Não somos a varicela nem a casa de bonecas. Somos mato e Praça de Espanha. Somos Rio Douro e Oceano Atlântico. Éramos quatro a chutar pó numa campa, a lavar louça num alguidar. Temos vernizes de várias cores, mas, vendo de perto, só conhecemos uma. Cor.
Somos quatro. Seremos sempre quatro. Esta é a nossa muralha.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Mãe

E tu não vieste. Como é que foste capaz de não vir? Eram os brinquedos, os meus brinquedos todos e o meu coração inteiro enfiados em dois sacos de plástico verde. Como é que foste capaz de me deixar sentada numa pedra fria hora após hora, eu vi o céu e era azul e ficou escuro. Tu não vieste. Contei os carros, foram quase cem. Não estavas em nenhum deles. Contei os dias segunda terça quarta quinta sexta sábado segunda terça quarta quinta sexta sábado eram muitos muitos dias, eram meses, era a minha vida inteira e tu não sabias. Por que é que não perguntaste? E, depois, quando soubeste, pediste desculpa. Pediste-me desculpa. E eu que te amava tanto que te amava acima de tudo de todas as coisas que rezava na Igreja vê lá tu eu rezava o terço porque me tinham dito que as meninas que rezavam que às pessoas boas, que a fé move montanhas que a bondade te poderia trazer. Eu acreditava em recompensas. E tu não vieste. E pediste desculpa, acendeste um cigarro como se nada fosse e eu que te amava tanto que continuei a amar-te, mas nunca mais, percebes, nunca mais te perdoei. Não te peço desculpa por não te ter perdoado. Sabes porquê? Porque tu estás em todos os minutos em que não vieste, em todos os sacos que desfiz, estás no meu coração quebrado irremediavelmente. Nem venhas, não, não venhas agora com razões justificações entendimentos desentendimentos tu não vieste muitas outras vezes. E eu esperei. Eu esperei e gastarei todas as palavras que existem, as pensadas, as ditas, as imaginadas e ainda assim não conseguirei calcular dizer vomitar gritar-te o tempo que esperei. Por isso é que quando enfim vieste, não te reconheci. Era noite, sabias? Fizeste a noite em mim. Por causa de te ter esperado tanto, não sei esperar. Ou acreditar que não vai ser sempre assim.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Confesso

Não posso viver sem o amor que te tenho. Posso viver sem ti, mas não sem este amor que sinto. Quando não amo, sou invisível.