sábado, 25 de fevereiro de 2012

Não posso morrer

Se pudesse alargava a minha casa. Como não posso, mudo os móveis. E mudo o quarto do miúdo vezes sem conta, presenteio-o com quartos "novos" todos os meses. Mudo o sítio da biblioteca que é uma estante com muitos livros. Disponho os carrinhos em jeito de loja, penduro coisas na parede, tiro outras. Suspiro. O quarto é tão pequeno... tenho de fazê-lo parecer gigante. E eu, que não peso nada, que mal posso com os braços, uso o corpo inteiro e invoco a cama e ela fica de pé e viro-a e encosto à parede coisas pesadas e espero sempre que nada se atire a mim. Que o quarto não me caia em cima.
Ontem caiu.
Nos segundos que são o tempo entre a mão dezenas de vezes na cabeça e perante os meus olhos, enquanto espero que o sangue escorra, ou não, e que a dor ganhe voz, enquanto decido se choro ou se ligo ao 112, um único pensamento.
Não posso morrer.
Sobretudo não posso morrer enquanto lhe arrumo o quarto.
Dói-me a cabeça, tanto, mas ontem doeu-me ainda mais o coração.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Filho

É assim. De início, ninguém compreende. Nem nós. Mas tem de ser. Não se ouve nada, não há arrepios, nada disso, mas no dia seguinte uma luz gigante invade-nos a vida, para nunca mais nos abandonar.
Fiz tanta coisa mal, porque não sabia. A culpa de não saber. Aproximamo-nos de algumas mães até entendermos que esta é uma relação que tem apenas a ver connosco. Mãe e filho. E pai e tias e avós e restante família, é certo. Mas será sempre entre mãe e filho. Esta parte, que é a minha única parte, não obedece às regras dos outros. Tanta coisa que se faz mal. Não conto. São os meus erros de mãe. Os meus arrependimentos. Chegar tarde. Não ter estado lá todos os dias da vida dele. Ser mãe é um nó na garganta, há-de ser sempre um nó na garganta. Querem saber? É preciso coragem, muita, um camião de coragem. Vamos errar e errar. E não há como voltar atrás. Nunca mais poderemos voltar atrás. Querem saber? É preciso liberdade. Um mundo de liberdade. E de esperança. E quem me vier dizer que um filho não nos faz melhores, está enganado. Um filho só nos faz melhores. Nunca nos poderá fazer piores. Mesmo as piores pessoas, tenho esta certeza, houve um dia, uma hora, um minuto, em que foram o melhor que podiam ser, por causa deles: dos filhos.
Há tanta treta, às vezes é muito, demasiado difícil. Não sabemos, o que vale para tantos, nada vale para nós. Somos extraterrestres no Jardim de Infância, na Escola. Somos julgados, comparados. Queremos agarrar no nosso filho e fugir para o ninho. Não podemos. Ter um filho é crescer. Bom dia, sou a mãe do... e sou uma adulta. Custa tanto acordar cedo e às vezes não custa nada. Vomitam a sala inteira. São injustos, chatos, mimados, espelhos das nossas fraquezas. Ficam doentes e nós também. Fazemos a cama de lavado três vezes numa noite. Não temos tempo para tomar banho. Numa reunião, estamos nervosos porque é hora de os ir buscar à escola. O coração aperta: já estamos a falhar. Mas nada, nada se compara a isto que se sente por um filho. Nenhum amor, nem o primeiro, nem sequer o último. Nenhuma paixão, ficarmos milionários, o melhor sexo do mundo, a amizade mais leal, a viagem mais fantástica, o sucesso mais suado.
Nunca, nunca, nunca. Nunca me arrependi. E queria que soubesses disto, filho.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

18

Claro que me lembrei. Perguntou: "Então esqueceste-te?". "Não, dia 18, foi no Sábado". "Não escreveste nada...".

Como é que eu escrevo o que não quero saber? Que ele não volta mais? Que fazia anos nesse dia, que me lembro de juntar as moedas e de lhe comprar isqueiros e porta-chaves???

O que é que digo? Ele não está. Não volta. Não foi só ali. Mas vive em mim todos os dias. Porque é o Pai.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Do sim

O meu amor não se assusta. O meu amor lava-me a loiça. Carrega os sacos. Abre-me sempre a porta. O meu amor acha-me chata. O meu amor às vezes é tão chato. O meu amor pega-me ao colo. O meu amor tira as porcarias do ralo porque eu não gosto. Mata as aranhas e diz bom dia a toda a gente quando eu estou de trombas. O meu amor está sempre a assobiar. E tem projectos. Fala-me dos projectos. Diz projectos e é como se eles já existissem. O meu amor tem sempre um maço de tabaco extra. E bebe sempre dois cafés de seguida. O meu amor telefona-me porque o metro ainda demora. O meu amor veste um fato e põe gravata quando jantamos em casa. O meu amor joga às cartas comigo e perde dois a zero. O meu amor dobra a manta do sofá e põe as pilhas na reciclagem. O meu amor não gosta dos meus chapéus mas compra-me botas de salto alto. E gorros freak.
O meu amor pensa sempre em mim.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Ingenuidade

Havia muita coisa que eu desconhecia. O desgosto. A impossibilidade. A profunda diferença. O meu lugar no mundo. Outras ainda. A culpa, um menino de olhos azuis. Um homem partido ao meio. Uma família destruída. Outra morta. Um mundo virado, para sempre, do avesso.
Havia tudo isto, sabes, claro que não sabes. E por causa de tudo isto eu não percebi os cafés e o aquecedor ligado apenas duas horas. Não entendi a lentidão dos passos, não percebi que nada nada nunca mais nada jamais até alguma vez será o que foi antes. Estas coisas todas misturaram-se e as escadas do quarto andar levaram-me directamente ao chão. E, pelo meio, tanta vida.
Passou este tempo, o que tu sabes.
E hoje sei que houve um dia em que o meu cabelo mudou de cor. Que engraçado, afinal eu ainda era, apenas, uma menina.

Não vou

Não quero ir. Não vou e já estou a ir. Tenho de ir. Alguém me agarre, agarra-me tu porque é necessário mas eu não quero. Quero o meu sofá e o sono de paz. Os bolos e as cartas em cima da mesa. Um papel: campeã e campeão. Não quero ir, não me deixes ir. Mas vou. É preciso. Nada a fazer. Depois disto, saberei sempre que houve este lugar e será como uma cicatriz imensa, escondida, de relevo, como se num momento estivessem todas as distâncias. Estivesse o hoje e o futuro. Num instante. E em cada palavra eu morro em cada movimento eu morro em cada passo até lá eu estou morta, não vês. Não quero ir e já lá estou.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Ainda é cedo (Para a M.)

E então os dias ainda são trémulos. Sabes e não sabes. Que tudo passa mas remóis. As palavras ainda não se cruzaram com o resto. Só existem. E, para além delas, podes teimar e temias que tudo ainda é futuro. Entretanto a guerra instalou-se queres mas não queres. A esperança. É maior que tudo a verdade. Má. Esta verdade. Doentes, as horas. Se fechares os olhos nada foi dito, mas tudo já foi dito. Contas a alguém mas é como se ao contares fosses desleal ou ainda não acreditasses. Porque estes dias são outra coisa que tu só sabes sentir. Quando tudo o que desejas é o contrário.
- "Pede-me um copo de água" - talvez digas, e a tua voz já é toda outra voz. Quem amaste? Quem amas tu? Até quando dobras as camisolas tens mãos de pesadelo.
Ouve o que te digo eu que não sei nada a não ser os estilhaços, eu que acredito enquanto durar o acreditar. Ouve o que te digo. Ainda é cedo. Continua a caminhar.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Os outros

É preciso muito tempo para acreditar. Normalmente segundos. Sabemos logo se acreditamos ou não. Dizem-nos coisas como saudade, vem tomar café, hoje pensei em ti, quero o teu rosto na palma da minha mão. E não acreditamos. Pior: não queremos saber. Dizem-nos isto e poderiam estar a dizer que preferem sacos com asas ou café sem açúcar. Não lembramos. São palavras feitas de vento, de vazios, de coisas que não se podem construir. Não ouvimos. Não cheiramos. Não somos gente. E continuam a dizer e quanto mais insistem nas palavras que não ouvimos mais sabemos que não podemos acreditar. Porque quem nos vê para lá do óbvio saberia sempre o que diríamos de volta. Quem amamos, conhece-nos. Os outros, continuam a falar.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Uma pedra

Não foi por causa do Vitorino e foi ele quem a trouxe à luz. A frase: "Eu hei-de amar uma pedra", que é o nome do livro do Lobo Antunes. Desde que a li repito-a tantas vezes dentro da minha cabeça, é como uma ladaínha, é mais uma força. Uma certeza, se calhar. Uma bengala. Repito e é como se soubesse, e não sei porquê. Segura-me e não tenho parado para pensar porquê. Não interessa. Eu hei-de amar uma pedra porque as pedras não saem do sítio, só se as trouxermos connosco. Uma pedra é duradora, só se desfaz depois de séculos e ainda assim é uma pedra e até ser pó sobreviverá a mil tempestades. Eu hei-de amar uma pedra porque a pedra que não tem raízes, está presa ao chão por uma força. Eu hei-de amar uma pedra redonda e pesada, lisa à superfície e esburacada no interior, porque as pedras têm buracos mas são firmes e sólidas, continuam, mesmo depois de tudo. Eu hei-de amar uma pedra eu hei-de amar uma pedra. Uma pedra como eu.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Manchete

Não ter de ouvir não condenar ser condenada não julgar ou ser julgada estacionar o carro como bem entendo usar as meias mais pirosas o chapéu mais ridículo gozar com o mundo por fastio não saber como funciona o programa x não esperar em vão não culpar ser culpada mudar de rua e de sapatos não marcar números certos e levar com mundos desconhecidos.

Passo

Não sei jogar este jogo. Nunca soube jogar este jogo. Da única vez que teimei que sabia, apostei tudo e perdi até o que não tinha. Não vou a jogo. Não sei fazer bluff, não tenho fairplay. Sou bruta. Entro a pés juntos mas é por meiguice. Ainda que não se perceba. Não sei guardar cartas para depois, jogo conforme o apetite. Não faço fintas. E vivo descalça. Não tenho pano verde nem tabuleiro de xadrez. Nem cartas na manga. Digo o que sinto e se volto atrás é porque deixei de sentir. Ou afinal não sentia. Não vou a jogo, já disse. Podem deixar cair a rainha.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

...

De manhã há café, casaco, óculos de sol. Num instante o dia adormece antes que eu tenha acordado. Dizem das pessoas tristes que não tomam atenção ao céu aos sorrisos dos outros ao aproximar da Primavera. Pode ser. Mas o que eu acho verdadeiramente é que as pessoas tristes nunca têm muito tempo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Pesadelo

O homem quase que me agarrava no sonho e, quando acordei, acabou por me agarrar. Em cima da hora, acordo todos os dias em cima da hora e às vezes com os sonhos agarrados ao coração. Pesam tanto. Disse-lhe: "Tive um pesadelo". "E apanhou-te?" "Não, não me apanhou". Só depois. Apanhou-me no melhor de mim. Olhei para a chávena de café e para a mesa e para as folhas e pensei e pensei e voltei a pensar e antes da raiva e antes da tristeza e da desilusão antes de tudo isto, eu vi. O rosto do homem que não me apanhou no sonho. Eras tu.

Que horror.