terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Chatice

Como tudo me cansa não há nada que me apeteça fazer até ao fim. Só obrigada. A mais velha de nós quatro diz que é outra coisa, que é vida, que isto de estar sempre a imaginar o que fazer, que é assim uma coisa mesmo boa, como um assado no forno bem temperado. Que vida é esta então que me aborrece no pico? Achava que não, que um dia, em paz, tudo me chegaria. Não chega. Nada me chega e descobri que é isso que me torna chata. E refilona. E insuportável. E engraçada. Tenho assim tantos sonhos e a certeza absoluta que me vão cansar. Já estou cansada e ainda só os imagino.
O que me poderia salvar era a Ciência. Sou tão má a Matemática que perdi a última hipótese de me cansar mais devagarinho.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Febre

"Não posso, tenho a minha filha doente". Ouvia-o dizer ao longe, era da porta da rua, alguém que o chamava. Ouvia-o entre a febre e o suor em gotinhas na testa, debaixo do cobertor castanho, de boca encostada ao lençol de flanela feito à justa e à medida da cama que o avô comprou. "Não posso, tenho a minha filha doente", e nenhuma dor aguda no ouvido, os graus que subiam em flecha e que faziam o meu corpo doer, a sopa que não comia, os olhos que piscavam quentes e ardiam, nada mais me importava. O pai chegou. O pai não vai. O pai está aqui. "Então filhota?", ele ao pé da cama já, os beijos dele, a mãos ossudas, os dedos a cheirar a tabaco, o sorriso gigante, as rugas, na testa, de preocupação. "Não posso, tenho a minha filha doente". A perna e a barriga que doíam, as noites acordada à procura de um sono qualquer, o tecto do quarto azul a engolir-me toda, a mana a acordar e a ir para a escola. Os barulhos da casa a serem nada, a solidão a evaporar-se, as chaves do pai em cima da cómoda e o isqueiro e o tabaco pousados. "Não posso, tenho a minha filha doente".
Quando o corpo me dói, estou sempre à espera que tu chegues, pai.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Por dentro

Eu já escrevi por dinheiro. Eu escrevo por dinheiro. As minhas palavras são prostitutas, mas são prostitutas felizes. Acontece que quendo escrevo por dinheiro, não amo, mas pode acontecer apaixonar-mne. A mim, e a outros como eu, já nos pagaram para nos apaixonarmos. Às vezes olhamos para a página em branco e não nos apetece ser pagos. Apetece dizer outra coisa. Mas então debaixo da língua surge-nes um doce veneno, amargo também, mas sobretudo picante. É realmente como dizem, como a veia a pulsar, e começando já não existe nada a segurar a mão. O texto já estava escrito. O texto acontece-nos. Por isso é que às vezes tantas gralhas. Um teclado, um alfabeto, é tão limitador.
E isto é tudo tão verdade que nem é preciso dizer mais nada.

Parêntesis

A secretária do pediatra é amiga da família. Não da minha. É amiga. Sabe coisas. Perguntou se estava tudo bem. Disse outras coisas. E finalizou: "eles nunca vão achar piada às macacadas dos nossos filhos como nós ou os pais". Eles são os outros, os que chegam depois. Não sei se ela disse isso perante a birra do menino, não sei se ela disse isso porque está porque é amarga ou porque já viu ou porque sabe.
Fiquei triste porque concordo. Há uma família que nunca se destrói. O pai do meu filho e eu estaremos para sempre ligados por causa do menino. Só os dois sabemos o que é sentir isto por aquele menino específico.
Claro que o amor se constrói. Mas, lá está, as macacadas do menino, aquilo que ele fizer de horrível e feio de menos giro é só nosso. E isto é a única coisa de que tenho pena: por já não sentir amor por quem ama exactamente como eu, o meu menino.
E só hoje, cinco anos depois, me apercebo que essa é sem dúvida a única desilusão que alguma vez importará.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

...

Abre e fecha os olhos, vais ter de acordar algum dia. Amor, que saudades dos comboios sujos. Amor, e do rio. E da porta verde tão grande quanto tudo o resto. E dos sinos (sabes que ainda ouço os sinos). Por que é que nunca arriscaste mais, o que fez de ti tão certo e regrado tão suave como os meus cigarros? Eu sei eu sei tu e a tua mãe falam com doçura e as janelas da tua casa são brancas assim muito novas como tudo o que eu nunca vi. Quando o comboio partir tu serás uns dos que não se vão despedir. És da gente forte e plana, enquanto eu sou estas montanhas às vezes fecho os olhos e tu não sabes. Que saudades amor das ruas que não me mostraste e do vinho que não bebemos e todos aqueles vestidos que guardei (nunca cheguei a usar). Que saudades do que quase vivi.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Real

Estás enganada. Tens é de aprender a viver com esse lado tão triste triste que ele é. Não há nada que possas fazer. Repara, fica atenta, ele irá afagar-te o cabelo quando menos estiveres à espera e isso é uma certeza. Pode acontecer numas escadas, na saída de um café. Chama-se lealdade e é aquilo que ele é. Tens de olhar para lá do negro do fundo dos olhos do que ele nunca te dirá, a não ser quando faz aquele tique sabes ou quanto te espantas com tudo aquilo que desconheces e que ele também é. Quando ele te puxar para dançar uma dança ridícula, quando ele te beijar o centro das costas de uma forma que nunca esquecerás, por mais que vivas.
Fica. É tão triste, mas é o mais profundo e cru que irás encontrar.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Deve e Haver

Agora não posso que bati com o joelho na parede sabes como é bater com o joelho na parede sabes que aleijado as coisas não têm a mesma piada e o que importa é que tenha tudo muita piada. Fazemos assim: montamos um Carnaval, atiramos foguetes, convidamos até algumas pessoas, se preciso for dizemos que somos românticos, mas não te esqueças que tenho aqui a factura e quando tudo acabar eu vou sacar desse papel imenso de Deve e Haver. Portanto, pelas minhas contas, eu não devo nada e como até tenho este joelho assim moído e como até tenho aqui quatro ou cinco coisas que posso atirar como uma mina ainda que desactivada não interessa não deixa de ser uma mina ou não te lembras que viemos da guerra? Pois então ora não me peças desculpa (eu gosto tanto quando pedes desculpa), não sabias que estávamos em guerra? Claro que a culpa é tua, aliás este joelho este nervoso esta moínha aqui de lado os cabelos brancos e o acidente ali da frente é tudo culpa tua. Sim, tens esse imenso poder assim como eu tenho este poder que é o dizer as coisas que digo sem necessidade de pedir perdão estamos em guerra não vou pedir perdão. A festa acabou, os brilhantes eram só durante, achei que não era necessário avisar. O que te vale e eu não sei é que dentro de ti houve uma esquina o que te vale e que eu não sei é que existindo um lado certo e um lado errado, eu perco, sem saber. Todos os dias.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Falta de jeito

Desde quando, gostar de alguém, é uma questão de jeito? Já dizia o MEC e como ele tem tanta razão. Deve saber, nem imagino as vezes que não deu jeito a alguém gostar de um MEC.
Tem tudo de dar jeito, às tantas as pessoas são armários qua não cabem numa divisão. Se calhar é por isso que aproveito as coisas que não cabem em algum lugar. Tudo me dá jeito, menos as pessoas. Dar jeito é para a madeira e para os sacos das compras, dão para bricolage e para o balde do lixo. Mas quem amamos? Desde quando é que uma pessoa tem de dar jeito? Dava-me jeito que fizesses menos perguntas, dava-me jeito ficar aqui agora sossegadinha a construir palácios no ceú a estender as pernas a não pensar em nada de especial. Tu também me dás jeito, mas é um jeito que tem de se encaixar, porque o amor exige de nós que estejamos sempre brilhantes. Mentira mentira é mentira. É como a amizade. Não tem de dar jeito nenhum. Como um filho, que, acreditem, ainda menos jeito dá. Gostar de alguém, estar em alguém, é não falar de nada em especial. Não é preciso fogo de artifício. Às vezes, basta não dar jeito, e estar lá.