sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O medo

Ele diz coisas que eu nunca ouvi. Tem ideias que me surpreendem. Fala de rotina. Do medo de perder a ilusão de que é possível viver com o sangue fervente. Para sempre. Oiço-o e quero desembaraçar-lhe os nós do coração, trazê-lo comigo numa viagem a outros sentimentos. Tirar-lhe o tapete e fazê-lo voar de olhos fechados. Ele tenta proteger-se do fim da mesma forma que se protegia no início. Diz coisas que eu não entendo. Por isso, nunca fica muito tempo. Ele pode ficar mil dias, mas as malas que traz nunca ganham pó. Remexe-as, abre-as vezes sem conta, não deixa nada fora do sítio. Quando me deito, sei que está ao meu lado, mas é como se esse lado da cama continuasse vazio. Fomos tantas vezes só metade, que me apercebo que somos só metade. Quando lhe digo isto, indigna-se. Tem olhos verdes que quando se zangam são lodo espesso, têm animais prontos a lutar dentro deles. No início, não me apercebia, não ligava. Mas, agora, quando ele responde em fúria às coisas que lhe digo, por vezes calo-me. Porque ele diz coisas que eu não entendo. E fico só mais este bocadinho a fazer de conta que não vejo as malas arrumadas junto à porta.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Voz

Não sei viver calada. Não sei fingir, virar a cara para o outro lado. Não conheço isso que é o equilíbrio entre o que se quer muito e apenas o que se tem. Quero o tom certo da melodia, a exacta quantidade do que me preenche o coração. Porque eu não ando pelos caminhos a encolher os ombros, porque perdi muito à conta de tentar e entrego-me esse direito. De levantar a voz em minha defesa. Não tenho de viver calada. Não admito que me queiram calar.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Tempos

Sou do tempo em que se partilhavam cigarros e éramos felizes assim. Sou do tempo em que se dizia: “Amo-te para sempre” e todos sabíamos que não podia ser para sempre. Mas prometíamos. Não concebíamos outra espécie de amor. Sou do tempo das serenatas e das drogas leves e pesadas. Da mão que ergue a outra mão, que não julga. Sou do tempo em que se experimentava tudo: dormir ao relento, trair, ser traído, chorar uma semana inteira, prometer atravessar um oceano só para o ver. Sou do tempo em que um amor podia durar apenas uma semana mas ficava marcado a vincos no coração. E aquela pessoa nunca se destruía ao nosso olhar. Sou do tempo em que os planos de futuro eram todos bons ou uma treta, dependendo da qualidade do vinho que se estivesse a beber. Era tão longe o futuro. Éramos tão felizes. Todos. Um por um.

Agora, não sou de tempo algum. Talvez alguém tenha descoberto alguma coisa que eu ainda não descobri. Talvez se tenham já todos habituado. À perda, à desilusão, ao desencanto. Mas como, como, como? Dou por mim a olhar nos olhos de quem foi de um tempo que eu não sei, a ver se deslindo, a ver se me encontro, a ver se dou com alguma outra coisa igual à minha. Mas não. Ainda guardo esta eterna revolta que não consinto que descambe em melancolia. Podia ser cansaço. Não é. Eu, simplesmente, não vos compreendo.

A pomba e o gato

Quando se encontraram não sabiam que existem mundos que não se tocam. Suspeitavam de afinidades e atraídos por aquilo que então os mataria decidiram coisas que não têm nome. Não se encontraram, porque já há muito que estava decidido o encontro. Era como se tivessem esperado, como se sempre estivessem estado à espera e nem fossem precisas as palavras que usamos no início. Antes da voz, era o sangue. Antes do abraço, era a pele.
Viviam nos olhos um do outro e, durante algum tempo, a urgência de se tocarem era maior do que o medo. O gato, impaciente, rondava, roçava na perna do desejo, miava alto, procurava território. O gato não sabia que do outro lado estava uma pomba. E que na lei da Natureza o gato come a pomba. Mas o gato apaixonou-se pela pomba, pelos voos altos, pela paz e pelo branco da madrugada. A pomba girava no céu e caminhava ao lado dos humanos sem os temer, quase os gostando. O gato, fingidor, não obedecia a regras e às vezes mordia a mão de quem tentava um carinho. A pomba olhou o gato e nos segundos que ditam uma inteira vida não acreditou. Quando o gato passou, a pomba abriu asas e fugiu. Sempre que o gato se aproximava, tentando um chão para os dois, a pomba afastava-se. E, do alto, num parapeito de pedra, ela olhava o gato já com o coração cheio de medo. Esse medo que nasce das coisas que não se percebem. Como é que pode ser o amor de um gato e de uma pomba?
Não podia. Mas o gato, marginal, acreditava que sim. Ele não tinha ainda reconhecido no outro animal uma pomba. Apaixonara-se pela liberdade do voo, pela calma contida na paragem. Amava já as asas da pomba. O gato não sabia que os mundos dos dois eram tão distantes quanto o céu da terra. Por isso, o gato saltou.
Nesse dia, a pomba não fugiu. Descreveu círculos no chão, olhou o gato nos olhos e seguiu o felino. A pomba não acreditava mas, num repente, queria ter quatro patas e uma cauda. O gato não sabia, mas ansiava pelas asas que nunca tivera para poder conhecer o mundo do seu amor. Os gatos não têm asas. As pombas precisam de céu.
Enquanto durou o tempo que lhes estava destinado, o gato tentou fazer da pomba gato e a pomba tentou mostrar ao gato a claridade do dia. O gato perdia-se na noite e muitas vezes o seu miar era como um uivo. Incompreendido, assustado com o possível voo da pomba, o gato começou a cercar a ave. E o abraço era tão apertado e confuso, que o gato foi arranhando a amada. Primeiro partiu-lhe uma asa, depois arrancou-lhe uma pena. A pomba, partida, olhava para o azul e para o branco das nuvens e tinha medo de um dia deixar de voar. O gato tinha descoberto que ela era uma pomba e ela percebido que o gato nunca poderia voar.
Às vezes, a pomba desaparecia. Ficava longo tempo no céu, mas quando olhava para baixo, via o gato de encontro aos passeios, magro de fome do amor que lhe tinha, doido das asas com que não nascera. Condoída, a pomba descia à terra. E o gato arrancava-lhe mais uma pena da asa. Foi assim durante muito tempo. Até a pomba ficar moribunda e descer ao chão. O gato olhando o seu amor partido, deitou-se ao lado da pomba e, esperou com ela, pelo fim. E descobriu, já tarde, que o medo também pode matar.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Fazer doer

Custa-me tanto gente a doer-se à minha custa. As lágrimas que me choram, choro também. Em cada não que digo e disse, a minha alma também se partiu, como se fosse eu a receber a dor que o acompanha. O mesmo com os meus amigos. Enfraquecem-me os corações partidos. Nem preciso que digam . Basta saber. "Ele foi-se embora", "Ela tem outro amor", alguém já não quer, mentiu, fugiu, virou tudo ao contrário. São histórias de sempre e continuam a bater-me como a primeira vez que percebi que gostar não chega, que amar é, por vezes, pouco. Mas como? Devo ter feito tantas vezes a pergunta e são ainda estes estilhaços de desilusão e compreensão que afinal isto aqui que penso aquilo que sinto o que pensava que era não é bem assim, que me tolhem, me encurvam. Eu ouço os desabafos e encolho. A multidão dá palmadinhas nas costas: o segue em frente. Seguimos todos. Mas eu, eu fico sempre um bocado mais a olhar os destroços de tudo sem perceber. As mãos que se desapertam, os nós que se desfazem, os dois que agora são outros dois. E depois niguémn acredita. Sou eu lá exemplo... Ninguém acredita que me custe este tanto. Mas custa.
Por isso, quando sou eu a dizer não, fico sempre à espera que o mundo me desabe. Quando sou eu que parto, não sei lidar comigo.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Natal 2009 (do Verdade ou Veneno)

sexta-feira, 25 de Dezembro de 2009

Meu amor,

tu abrias os presentes (as prendinhas, como dizes) e querias que fossem todos carros. Dentro de mim o horror tamanho por não ser capaz de estar feliz por ti. Queria fotografias, quase que gritava para a tia te tirar fotografias. Se eu levantasse os olhos do papel de embrulho que te ajudei a rasgar, só veria as cinzas de todos aqueles que já não poderiam estar aqui: porque foram embora ou porque escolheram caminhos que não os nossos. Meu amor. Tu até acreditaste que foi o Pai Natal que te deixou lá fora a bicicleta. Mas foi a tia. Nenhuma de nós conseguiu, apesar do esforço, fazer com que este Natal parecesse Natal. Tu deves ter reparado.
Acabou por acontecer hoje de manhã. O Natal foi quando a avó encheu a banheira para o teu banho e eu disse-lhe: “Não o tires daí” e fui para dentro de água ter contigo. Por momentos, quando te deitaste em cima do meu corpo, a tua pele pertinho do meu peito e os teus olhos molhados a tocarem na minha bochecha, pareceu-me o dia em que nasceste. Tanta esperança. Meu amor. Vamos lá tentar que para o ano seja melhor! Ajudas a mãe???

(do Verdade ou Veneno) 10 de Dezembro

quinta-feira, 10 de Dezembro de 2009

Três
"Depois de entre os escombros
ergueram-se dois ombros
num murmúrio
e o sol, como é costume, foi um augúrio
de bonanca
sãos e salvos, felizmente
e como o riso vem ao ventre
assim veio de repente
uma criança"

(S.G.)

Dizer-te que não imagino os meus dias sem que existas é pouco, e se pensares bem nesta frase, é tudo. Quero explicar-te bem, mas precisava das tuas mãos pequenas, dos teus dedos de magia, precisava dos teus olhos.
Filho. Nasceste numa manhã tão clara. Filho, doeste-me. Fizeste-me. Vais-me fazendo. Não sei se é o teu riso, se é a tua carne que não é minha (não, não é minha, é tua). És um espanto. Tudo em ti é um espanto. Era uma manhã tão grande, quando nasceste. Eu era uma miúda. Quando nasceste. E tu tão pequeno a seres gigante na minha pele. Preciso de ti para te explicar que nasceste hoje mas que este hoje foi há três anos. Parece tão pouco. E é tanto. Por te ter aqui o meu coração bate em vida e com vida. Por estares aqui pude ver-me morrer um amor sem me desejar morta. Um dia chamaste-me mãe. Vê lá tu. Eu, a tua mãe.

Parabéns filho. Obrigada por me teres escolhido.

Parabéns meu amor.

(do Verdade ou Veneno) Assim?

domingo, 6 de Dezembro de 2009

Pára tudo. Esperem lá. A ver se percebo. Mãe, quantas vezes me contaste tu a história de quando o pai sofreu aquele acidente e pregaram-lhe o tal número da morgue e afinal eis que o pai não morrera e tudo ria à volta e por isso lhe chamavam "morto-vivo". Esperem lá. Pára tudo. A ver se entendo. Quantas vezes não me mostraste tu, pai, os estilhaços que tinhas na cabeça, os que não te tiraram, trinta e cinco anos no teu escalpe, esses montinhos de vidro debaixo do teu cabelo castanho e depois grisalho. As tias contavam a história. Todos ríamos - tu rias ainda mais. Dizias-te invencível. Esperem lá. A ver se acredito. Quantos acidentes de automóvel tiveste tu, ainda o ano passado voou-te um camião por cima, esmagou o carro e tu preocupado com os óculos afinal não os partiste e arreliado com o telémovel e os diabetes que dispararam, "Estou bem, filhota", a rir, a contar outra vez a história do "morto vivo". E a plataforma no rio, dois, três homens à água, desapareceram, menos tu, o único que se agarrou ao ferro.
Pára tudo. A ver se não estou enganada. Então e daquela vez em que foste ao armazém, foi há uns oito, nove meses, pai? Caiste desamparado, sangue na cabeça, desmaiaste, deram por ti esticado no chão, do outro lado da linha rias-te. Então e o tal bruxo dessa África onde nasceste e a lenda da cruz que trazias desenhada na pele, de nascença, como se tivesses vindo ao mundo já protegido, o tal bruxo que dizia que ias morrer muito, muito velho. Pára tudo já. Porque não tarda ponho-me a gritar. E da última vez que estivemos juntos, baixaste os olhos e falaste no dia em que a tua mãe, para cima de noventa, te ia morrer nos braços. Porque até tu sabias que ias morrer daqui a tanto tempo que na altura estaríamos já todos à espera.
Pára tudo. A VER SE PERCEBO.
Morres-me assim?

(do Verdade ou Veneno) Pai

Vou-te tatuar no pulso onde as veias se cortam mais fácil vou tatuar-te na carne que me deste vou-te prender na minha pele vou dar-te lugar em mim tu dirias que não e chamar-me-ias "trapalhona" ou abririas os olhos de espanto, esses olhos de ex-menino de colégio inglês, demasiado educado entre os homens que dizem asneiras. Porque tu não dizes asneiras.
Vou pedir que me encham os poros de tinta com o nome maior que tu tens que tu és que me encham este lugar vazio e pode ser que não me custe tanto
ter deixado
de
dizer
Pai.

Amor-dor

É aquele amor a doer devagarinho, que ainda vive, mas a sangue morno, como uma estaca enfiada na carne, não nos podemos mexer muito. Não sei se conhecem este amor partido nos cantos.

(do Verdade ou Veneno) PARTIDOS

quinta-feira, 26 de Novembro de 2009

Estamos partidos. Meu amor, meu amigo, estamos todos partidos. Há gente de olhos desfeitos e de coração torto. Há gente a desistir. Há gente triste triste. Estamos todos partidos. Já ninguém acredita em nada. Uns fingem que acreditam, mas eu vejo-os. Estão cansados. Têm sorrisos cínicos. A vida é-lhes uma imensa ironia. Temos passados doidos doridos doentes. Não conseguimos esquecer. Já não temos pachorra para aguentar. Os poucos que resistem de nada valem. Estão rodeados de gente partida.

(do Verdade ou Veneno) Uma mesa para jantar

sexta-feira, 20 de Novembro de 2009

A toalha se calhar até tem pregas que eu aliso com a mão enquanto tu olhas através do vidro para a noite imensa. À espera e já não estás à espera. Os nossos olhos irão cruzar-se e baixar-se com o peso de tudo. Aquilo que nós sabemos. E uma tristeza levezinha há-de cair sobre os nossos ombros porque sabemos que não deveríamos estar aqui neste lugar. As pessoas que passarem não saberão que nessa mesa para jantar não estão meses ou dias contados da maneira delas. As pessoas não sabem disto. Nem nós. Não chegues tarde para jantar.

(do Verdade ou Veneno) Invisíveis

terça-feira, 10 de Novembro de 2009

Há coisas que não têm nome. Nunca o tiveram. São esmagadas por pedras de edifícios, por caminhos, por objectivos, por sonhos individuais. Coisas como coração. Coisas como amor. Coisas como passado, presente, futuro. Há mãos que se tocam e que não constroem, porque nunca se tocaram, porque viveram separadas desde o primeiro minuto em que alguém disse: “vem” e outro alguém respondeu: “um dia”!

(do Verdade ou Veneno) Pedido

sexta-feira, 6 de Novembro de 2009

Filho estou cansada come lá o iogurte que estou sempre atrasada desculpa estar sempre atrasada. Ultimamente gostava que fizesses tudo aquilo que te peço come o iogurte alimenta-te por favor que eu continuarei a dar-te beijos e a olhar o espanto na cara dos outros por sermos os dois tão diferentes e nos pertencermos.
Tu és a minha família filho eu sei que entretanto não percebes que sinto dores ou tenho preocupações nem te vou dizer se as tiver eu para ti sou indestrutível mais veloz do que o vento e mais forte que essas montanhas onde fazes dos teus carrinhos jipes. Por isso é que não sabes que às vezes te levo ao colo e carrego a um mesmo tempo os sacos e os meus passos fraquejam. Eu não sou muito grande filho sei que te pareço grande mas nem por isso o sou daqui a pouco vais perceber isto que te digo e se calhar até vais brincar com isso.
Come o iogurte filho não quero gritar contigo só porque estou cansada não é nervosa é mesmo cansada. Vê os desenhos animados. Há tanto tempo que não vejo qualquer coisa na televisão pedes-me que te leia os livros em voz alta e depois não gostas porque nos livros da mãe nao há bonecos nem coelhos ou joaninhas. Não fujas para a estrada filho só por hoje dá-me um desconto que as mães, às vezes, também carregam corações partidos.

Família

O abraço da minha irmã. O riso da outra. Os olhos grandes de outra ainda. O sorriso da minha avó. As mãos da minha mãe. O cheiro do meu pai. As minhas amigas e eu junto a uma sepultura. O calor do meu filho. Alguém que me amou e que eu amei e que continua.


Esta é a minha família.

(do Verdade ou Veneno) Passado

Porque quando escreveste nas minhas costas partida eu era uma semente. Devia ter prestado mais atenção, ter feito tudo, talvez, mais devagar. Era uma menina e não sabia que existia uma frase nas minhas costas. A frase é uma linha torta. Pensei que se não a visse ela não me poderia guiar. Do outro lado da vida alguém sabia que eu tinha uma frase escrita nas minhas costas. Menos eu.

(do Verdade ou Veneno) Meu amigo

segunda-feira, 19 de Outubro de 2009

Quando perdi o meu pai (e note-se que eu não o perdi, deixei foi de o ver, ou antes, vi-o calado e mudo, sem que sorrisse e, para mim, a morte dele é não o olhar sorrindo-me), dei-me conta então daquilo que ele foi toda a vida para mim.

O meu pai foi o meu maior amigo. Não, não estão a perceber. Eu sou mulher, ele era um homem. Éramos os maiores amigos. Numa das alturas da sua vida o meu pai de olhos castanhos e índios, cabelos ondulados e grisalhos (já só me lembro do cabelo grisalho), o meu pai de riso aberto e maneira calma, fazia viagens para a Suíça. De carro. De carrinha. Vinte e duas horas quase non stop, estrada imensa à frente, uma lancheira, duas ou três paragens para ir à casa-de-banho. Meia-hora de sono numa qualquer estação de serviço. Não havia o euro. E eram os francos e as pesetas e tudo divididinho numa carteira preta pesada. O meu pai. Tão esperto e português. Foi uma vez, não se enganou, foi dezenas de vezes, nunca se acidentou.

Perto do Natal, houve um dia, em que decidi ir com ele. No meio da neve e do frio e da chuva ouvíamos rádio e eu ainda me lembro das canções e ele cantava comigo e perguntava-me tantas e tantas coisas e falava do atrelado que levava preso à carrinha e mostrava-me placas e dizia dorme e dizia come e dizia estás bem o meu pai que me amava tanto tanto e que era o meu maior amigo.
Éramos companheiros.
Dormíamos a sesta juntos, tínhamos uma brincadeira que eu inventei e que ele nunca mas é que nunca se esqueceu: se fosse quinta então não estávamos a dormir a sesta mas a quinta e por aí fora e ele guardava o melhor lugar da cama para mim e a melhor parte do bife e foi (e é) o único adulto que eu conheci que JAMAIS se chateou ou chatearia se eu pedisse um sumo no café e depois não bebesse nem uma gotinha. O meu pai podia ter 100 escudos na carteira e ter gasto os 100 escudos na bebida que eu não bebera que JAMAIS ficaria zangado com isso.

Na faculdade passava de madrugada por Coimbra e dizia, à sexta-feira, "Vens com o pai?", e eu dizia que não, porque queria sair à noite, beber copos, namorar. Ele ia embora e deixava-me dinheiro para essa noite e ia para casa e contava uma treta à minha avó. Mentia por mim. Safava-me.

E ria-se de todas as coisas que eu dizia e tirar-me-ia da prisão ainda que eu tivesse morto alguém. Eu conhecia os segredos dele e era a única pessoa que sabia exactamente quanto dinheiro ele tinha e se a história que estava a contar era realmente assim.

Éramos os maiores amigos.

Este era o meu pai.

(do Verdade ou Veneno) E o medo

segunda-feira, 12 de Outubro de 2009
E amanhã quando a vida nos enrolar e o cansaço e o tempo e o espaço e não vai estar este calor entretanto a chuva vamos esquecer esquecer que um dia chorámos e gritámos vamos fingir fingir que o mundo não se compadece do nosso desejo mas devia devia dar-nos tempo e espaço e lugares onde nos fosse permitido falar de tudo sem dizer uma única palavra porque não precisamos precisamos apenas de respirar em conjunto e sentir e sentir que não é possível explicar o que sentimos.

(do Verdade ou Veneno) Isto é feio, Pai

quinta-feira, 24 de Setembro de 2009

Tenho uma fotografia tua em cima do frigorífico. Estamos lá os dois. Está em cima do frigorífico por cobardia. Porque não estares me dói muito. A falta de coragem levou-me a colocar a tua foto num lugar alto. Não estou sempre a cruzar-me com os teus olhos, agora fechados, e evito entrar em pânico.
Fui sempre assim. Cobarde na perda.

Fazes-me falta

Fazes-me falta. Ainda que me esgotes as mãos, que me partas a loiça, que fujas e grites e tropeces e faças asneiras mil e estejas constantemente a dizer que não e a engolir as palavras que te recusas a dizer bem, porque não queres crescer, porque já topaste que isto de crescer são balelas e que a partir dai vai ser sempre a perder. Fazes-me falta no respirar tranquilo que é o teu sono, na certeza absolutamente perfeita que o melhor lugar do mundo é ao teu lado. Fazes-me falta miúdo. Fazes-me falta.

(do Verdade ou Veneno) Todos os dias

quinta-feira, 23 de Julho de 2009

Hoje sonhei contigo. Estavas ao meu lado, passei-te o meu menino para o colo, enquanto entrávamos para o interior de um prédio em construção... ou em ruínas, não sei bem. Estavas lá tu e, por isso, estava segura. Quando acordei, as saudades de ti explodiram no meu peito e fizeram do caminho para o emprego uma estrada de desalento. Sinto tanto a tua falta que às vezes parece-me que respiro mais devagarinho, a tua ausência é como uma corda que me tolhe a respiração, como se as forças me fugissem ante a impossibilidade de te ver, de te esperar, de te ouvir. A falta que me fazes pai. Esta saudade infinita, este pânico de me esquecer dos teus braços morenos, do teu cheiro, do sorriso travesso, da forma como o teu cabelo ondula e se espeta no remoinho. Nunca te vou assistir velho. Ajudar-te a sentar numa cadeira, aconchegar-te os cobertores à noite, colocar-te uma joaninha de chocolate à mesa de cabeceira como tantas e tantas vezes me fizeste. Respiro agora mais devagar. Parte da minha vida foi contigo. A criança que eu era está aí- não sei onde - de mão dada na tua. Por que é não ficaste só mais um bocadinho?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Mal

Isto passa tudo muito depressa. Gostava que durasse mais, que fosse mais, que entretanto não cessasse. Num instante já vivemos tanto, já vimos muito, sabemos das coisas. Depois, procuramos incessantemente aquele lugar, a reviravolta, queremos saber como é embora saibamos sempre como é mantermo-nos. E às tantas retrocedemos. A grande chatice é quando ficamos pior. Piores. Experimentámos fazer bem. Fizemos. Depois fizémos mal e não aconteceu nada de especial. Damos por nós e somos qualquer coisa em determinada situação que costumávamos dizer "não pode ser". Depois de termos visto.
Isto passa tudo muito depressa. Tantas vezes, aprendemos mal.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Outono

No Outono a minha avó cozia castanhas e o meu pai era vivo. Quando regressava a casa, cheirava a rua, a tabaco e a amor. Eu podia ligar-lhe em dias de chuva. Eu podia apanhar um comboio só para o ver. Tenho saudades dele na estação à minha espera, no fundo de uma rua a dizer-me adeus. As roupas que tem nas fotografias irão ficar fora de moda e será então que eu vou saber que passaram muitos anos. Dói mais depois de muito tempo. O tempo não apaga as coisas que nunca mais voltam.

domingo, 10 de outubro de 2010

Pouco

A mesa de vidro segurava as minhas mãos e o frio vinha de tão dentro que deves tê-lo sentido. Fiquei um longo tempo sem escrever. No interior do que eu sou, o Inverno. As palavras seriam poucas, estas que eu amo, as puras, as que me salvam e resgatam, perdia-as.
Não vês? Soube que estava por pouco, quando deixei de conseguir escrever.
Não vês?
Do outro lado da mesa tu tentavas fazer tudo igual. Como se bastasse. Estares. Dizeres coisas. Permaneceres. (Não vês? Eu perdi as palavras. As minhas palavras).
Lá fora o Outono chegava devagar e eu já não me importava. O Verão tinha sido curto e duro e eu também já não me lembrava. Tudo passou muito depressa e muito devagar. Antes de perder as palavras, tinha-me perdido a mim.
Falaste como se bastasses. Disseste como se fosse suficiente.
Eu podia ter calado e agarrado o pouco que trazias contigo. Fazer disso um banquete. Do pouco, um manjar, uma vida, uma explicação. Mas eu tinha perdido as palavras. Se não as tivesse perdido, não me teria dado conta.
A folha em branco era uma naúsea. Eu queria escrever sangue e só poderia escrever sangue, eu queria dizer medo e só poderia dizer medo. Era tudo cru em mim.
A mesa de vidro que nos separava não era uma mesa de vidro. Sendo uma mesa era a minha folha em branco e tu a pensares que chegava seres.
Dei-te a escolher. Pedi-te. Não acreditei. Estaria a mentir se dissesse que acreditei. Mas eu ainda não sabia muito. Não conseguia escrever, logo não sabia o que sentia. Não queria sentir. E tu, olhando-me, como se fosse isso. Estares lá, ser tudo.
Não chega.
Não vês?

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Entretanto

O meu dedo carrega no botão que chama o elevador e eu não tenho medo. Ando à minha procura e este é apenas mais um lugar. Quando me sento, do outro lado da janela está uma praça inteira e, nela, eu estou partida. Os meus braços, as minhas mãos pernas pés os meus olhos o meu coração está em toda a parte dessa praça e, enquanto falo com ele, que não conheço, a praça entra-me pelo peito e quase me impede de continuar. Falo muito. Até que lhe digo.
- "Se calhar, sou louca".
Ele quase que ri. Mas não ri. Tenta explicar-me que posso caminhar sem que o meu corpo seja gelatina. Eu componho frases com nexo e conto-lhe coisas feias e outras menos feias mas o que eu lhe quero dizer aquilo que lhe quero pedir não tem voz
- Eu queria esquecer, se faz favor.
Mas não digo.
Há outras coisas que gostaria de pedir. Enquanto lá estou, respondo a tudo, enquanto a praça me arranca bocados da alma, me grita infortúnio, me chama de má sorte.
Há coisas a compor. Ele diz-me coisas que eu sei. Mas estou partida há tanto tempo.
Antes de me ir embora, ele faz-me a pergunta mais difícil. Estou de pé, mala na mão e ele atira-me a pergunta e esta é toda a praça a entrar-me pelos olhos dentro. A pergunta é a minha dor.
Respondo
-Não sei.

Tenho de lá voltar. Mas continuo sem saber o que responder.